sexta-feira, agosto 29, 2008

Filiação

Desde pequena que o meu pai

- Põe uma camisola

E quando eu reclamava que não tinha frio, respondia sempre

- Tenho eu, por isso pões a camisola.

Normalmente o braço de ferro esticava-se até à altura em que ele tinha de me enfiar a dita pela cabeça abaixo, dizendo qualquer coisa como ser sempre a mesma coisa. Eu estava de acordo, era de facto sempre a mesma coisa. Os meus pais insistiam que eu fizesse o que eu não queria, ou que achava desajustado no tempo ou no espaço. Se a discussão se prolongava, aparecia, mais cedo ou mais tarde, o argumento da hierarquia intrínseca ao ser pai em vez de ser filho.

Quando cheguei à adolescência tornei-me uma especialista no rebolar de olhos e bufar pelo nariz. Depois de tão dura infância, descobri que havia lutas perdidas à partida, mas não me daria por vencida sem demonstrar o meu desagrado. Às vezes o cumprimento das funções era acompanhado de um elegante caminhar a patadas de elefante, que tenho a certeza terem feito vacilar os lustres dos vizinhos de baixo, ou pelo menos deixá-los na dúvida sobre a espécie animal que habitava o andar de cima. Servia esse gentil andar para sublinhar a minha expressão facial, que parecia ser transparente aos idiotas dos meus pais. Só há pouco tempo descobri que fingiam não ver, os espertos.

Algures no tempo o meu pai deixou de me mandar pôr a camisola. Não sei se foi do aquecimento global ou se terei aprendido a enfiá-la na temperatura correcta. De vez em quando ainda lhe rebolo os olhos, para garantir que continuo a ser pequenina, que não estou a crescer, que as covinhas atrás dos dedos das mãos não se estão a infestar com sulcos pequeninos e insistentes, que não começo a ver as veias à transparência com o punho fechado como o meu pai com a idade que tenho agora.

Conselhos universais

I learned only from bad films. When a young actor or writer came to me and asked "What can I do to learn to make films?" I was always in a mess because I didn't know what to tell them, So I asked myself how I learned. Now, when I looked at the good films, I was always a very good audience. I was never interested in who the actor was, who the director was or where the cameraman was. I lived with the film. I enjoyed it. It was an adventure. When I saw a lousy film there was something which made me say, "Wait a moment, this is not good, this I would have done differently". In my opinion, this is the only way I learned anything.

Fritz Lang, pag.59

quarta-feira, agosto 27, 2008

terça-feira, agosto 26, 2008

Terra à vista

Enganados à saída do ferry, virámos para Tróia. Entre o espanto e o horror, vi como se erguem torres e prédios anárquicos e feios à beira mar, um sítio onde se vão repetir rituais citadinos, com vizinhos de cima e de baixo e vistas para o andar da frente.


Seguimos para baixo, até chegar a uma espécie de ainda idílio campestre. Numa casa de campo, com paredes grossas e janelas pequenas, gozei o som das ondas do mar enquanto hectares de cultivo se estendiam à minha frente. A terra trabalhada tem um aspecto de generosidade, de amor simbiótico entre o homem e a natureza.


Dias mais tarde uma mulher que me parecia velha, mas que afinal tinha apenas a minha idade, falava-me do sítio e das pessoas. Contou-me que vão fazer casas para a gente da cidade ir ali passar férias. Mas estes campos são vossos, disse-lhe ingénua. São todos alugados, contou-me. A maioria vai ser posta fora pelos donos, mas querem manter alguns porque os turistas gostam de os ver trabalhar a terra.
No dia anterior tinha feito corta mato por entre os campos, gozando o cheiro da terra, da rega, dos vegetais a crescer, o muu das vacas. Depois de saber que vão manter o agricultores como curiosidade arcaica senti-me envergonhada de o ter apreciado tanto, como menina da cidade.


Depois de uma caminhada por entre campos de milho e tomate, a terra do Alentejo entranhada nos meus pés.

(quando fotografei os pés sujos era para fazer um post jocoso sobre a moda do auto retrato e o elogio aos sapatos. depois aconteceram-me as políticas de agricultura e o ordenamento do território que me mirraram a gracinha. na realidade, aconteceram-me os alentejanos que cantam dentro de mim e me comovem até às lágrimas).

O poder da oração


Fica a dica para dependências bancárias, carrinhas de valores, estações de serviço e ourivesarias. Para os carros, o autocolante "eu guio, Deus conduz" é capaz de funcionar. Se não, deve fazer prova em tribunal em como os larápios são soldados do anti-cristo.

Batina molhada




Depois do calendário romano, com um padre jeitoso por mês devidamente abatinado, há agora o mais ousado Sister Italia 2008.


O padre que lançou o concurso, por agora online mas o que ele gostava mesmo era de as ver desfilar com as Miss Itália, diz que o que é mais importante é a beleza interior. Mas se alguma se parecer com a Sofia Loren tanto melhor, claro.
É pedido às candidatas que enviem fotografias que expressem a sua beleza estética e espiritual, mas apenas se tiverem entre 18 e 40 anos. Fico um bocado baralhada com este limite, parece-me que uma freira de carreira mais longa ganha em alma o que perde em elasticidade epidérmica ou em torneio de pernas.


O grande objectivo é mostrar a mundo que há mulheres lindas e charmosas, e que mesmo assim preferem os prazeres divinos aos carnais. "Mas vocês pensam realmente que as freiras são todas idosas, contraídas e fúnebres? Hoje já não é assim, graças também à injecção de juventude e vitalidade trazida ao nosso país pelas raparigas estrangeiras: há freiras de África e da América Latina que são realmente muito, muito bonitas. Sobretudo as brasileiras..." disse o Pe Antonio Rungi. Pareceu-me ouvir cair uma gota de saliva com aquelas reticências.

Este concurso não deve ser ofensivo da religião. Ou será que as freiras estão a fazer um sacrifício ao Menino Jesus?

segunda-feira, agosto 25, 2008

Cérebro, obstáculo

Sem pressa, esperava para ser atendida na papelaria enquanto a menina tirava fotocópias a uma mulher com o filho de seis anos. A senhora mandou o miúdo pôr uma carta no marco do correio, aquela coisa vermelha e alta com uma ranhura.

Volta a criança passados 5 segundos

- Aconteceu uma coisa engraçada, não cabe

Ainda pasmava com a resposta da criaturinha, quando a mãe

- Cérebro, obstáculo.

Fiquei a olhar para ela, enquanto repetia apontando para a testa

- Cérebro, obstáculo. Sem estragares o envelope vais ter de descobrir como o fazer entrar. Já lá vou ter.

Vim-me embora a pensar na largura do sobrescrito e na diagonal da ranhura. E nas pessoas que desistem de resolver problemas por difíceis.

Na praia da D. Ester

a ler, debaixo do toldo.

quinta-feira, agosto 21, 2008

They will toll for thee

Novela do quotidiano

Televisão acesa, ele ouve atentamente o Rui Santos enquanto eu não consigo tirar os olhos das notícias que passam em rodapé. Só em mortos já vou em 250 quando ele

- Parece-me bem, não achas?
- Que a Galp tenha diminuido 1,5 cêntimos por litro de gasolina?
- Não, que o Carlos Queiróz tenha acabado com as conferências de imprensa para apresentar a lista dos convocados, vai passar a publicar numa página da internet.
- Parece-me importante, de facto. Ajuda a combater o aquecimento global.

Mais um morto, o dono de uma ourivesaria baleado durante um assalto à sua loja. Acender a televisão depois de estar uns dias de férias faz com que Portugal pareça um país estrangeiro a não visitar.

Boomerang

Chegados à praia depois de uma noite de maré cheia e revolta, encontramos ao longo de vários metros de areal bidons, cordas, garrafas, sacos, caixas, tetrapacks, todo o tipo de lixo que a costa engoliu nos últimos tempos. O mar é como a consciência, devolve apenas o que lhe foi dado, sai-me da boca como um oráculo.

Horas mais tarde tive de ser assistida por um médico, acometida de uma insolação e gastroenterite galopante. Apalpando-me a barriga senti uma embalagem de sumo abandonada, dois sacos de plástico e um golpe de calor que me chegou ao intestino grosso.

sábado, agosto 16, 2008

Who are you going to call?

Mesmo antes de ir para férias recebo um aviso fundamental.


Fico a pensar a quem é que as pessoas andavam a ligar de tão errado para que seja importante fazer este alerta. Depois assalta-me uma dúvida existencial; a quem é que eu telefono se o acidente for causado por uma planta?

sexta-feira, agosto 15, 2008

Férias

Que não me falte sol para ser brasa nem azul para ir além. Se a meteorologia não ajudar, umas caipirinhas também servem. Umas tantas para ele, para eu parecer brasa, e outras para mim, para ficar além.

Imbatível

Ponho os livros por ordem. As estantes por continente, dentro dela por país, por eras, por ordem alfabética do apelido dos autores. Nos sítios onde chego com dificuldade aqueles de que não gostei, que me ofereceram e que nem quero ler. Ao discutir a minha técnica de bibliotecária frustrada com o meu pai, olhou-me com estranheza. Ele prefere ter na linha dos olhos as lombadas dos seus livros preferidos, assim basta olhar para elas como quem para um quadro para voltar aos sítios onde gostou de estar.

Anamiato

Alguém, muitos alguéns, entraram dentro de mim e desataram aos gritos, pinotes e pontapés. Deixaram-me tudo fora do sítio. A qualquer momento espero encontrar o pâncreas no lugar do olho esquerdo, o intestino delgado enrolado nos pulmões, as mãos a sair das nádegas, o nariz a espirrar a alma pelo tornozelo.

domingo, agosto 10, 2008

Novela do quotidiano

(Na sala, ela lê jornais no sofá enquanto ele trabalha com o computador à secretária)

Ele: Já estou a ficar cansado, vou parar.

(levanta-se e dirige-se para ela)

Ela: Temos restos de ervilhas, mas só dá para um. Posso fazer uma massa.

(ele senta-se no sofá ao lado dela e abraça-a)

Ele: Tinha pensado convidar-te para almoçar fora. (Beija-a). Estou a ficar cheio de fome.

Ela: (enrosca-se nele, mostra-lhe os jornais) Olha, esta semana veio o Train your brain, podíamos levar para o almoço. Deixa cá ver os exercícios... Este, temos de ver quantos círculos cortam um quadrado.

(olham ambos para o livrinho, silêncio)

Ela: Eu contei 6, e tu?

Ele: 7

Ela: 7? Deixa cá ver melhor... (silêncio, ela olha para o livro). Sim, tens razão, são sete. Agora os triângulos que estão totalmente dentro de círculos.

(olham ambos para o livrinho, ele começa a ficar ligeiramente impaciente, silêncio)

Ela: Quatro!

Ele: Sim, eu também.

Ela (entusiasmada): Agora os quadrados que contém um triângulo!

(olham ambos para o livrinho, ele já bastante impaciente, ela não repara, silêncio)

Ela: Três!

Ele: Um.

Ela: Só um? Não pode ser.

Ele: Sim, os quadrados que contém apenas um triângulo, só há um.

Ela: Vou ver nas soluções... sim, tens razão. Mas então a pergunta é que está mal feita, eu não tinha percebido isso.

(ele começa a levantar-se, podem finalmente ir almoçar. Ela vira a página do livro)

Ela: Agora este, puseram as consoantes e temos de descobrir quais vogais para fazer uma palavra neste círculo (ela olha para o livro, concentra-se) Acaba em -íssimo.

Ele (desesperado, sem olhar para o papel): Esfomeadíssimo.

Sobre o processo criativo

"If you're not prepared to be wrong, you'll never come up with anything original"
Sir Ken Robinson, TED talks sobre criatividade e educação


Como é que conseguem fazer sempre filmes de qualidade que o público e a crítica adoram?

Há várias razões. Uma delas é que não estamos em Los Angeles. Mantemo-no livres de qualquer pressão exterior. Ao fim do dia, quando regresso a casa, todos os meus vizinhos e amigos trabalham noutras coisas. Não vivemos apenas nessa bolha fictícia de filmes e de gente que faz filmes. Talvez por isso, quando nos apresentamos ao trabalho, estamos conscientes de que fazer um filme é algo muito especial. A Pixar é um estúdio gerido pelo John Lassiter, um artista. Não somos governados por um painel de accionistas ou por um homem de negócios. Isso permite-nos cometer erros. Enormes. Fazemos montes de erros, mas a visão e o risco são sempre encorajados. Pode não ser um método que os homens de negócios adorem, mas, felizmente, a Pixar tem um artista ao leme. Não somos mais espertos nem temos melhores ideias que as outras pessoas. Mas a verdade é que nunca temos medo, nunca fugimos e, se a coisa não está a resultar, damos tempo ao tempo, corrigimos o que está mal, até que a ideia acabe por se aperfeiçoar. Somos muito bons a dar alento.


Andrew Staton, realizador, entrevistado por Rui Henriques Coimbra para a Actual, Expresso de 9 de Agosto de 2008

sábado, agosto 09, 2008

What's in a name

Estava a escolher modelos para o blog, e continuava a voltar ao mesmo. Snapshot tequilla. A aparência é terrível, mas o nome maravilhoso. Repeti-o mentalmente, snapshot tequilla, snapshot tequilla, que giro que isto é.
Acabou por ganhar o Minima Lefty Stretch, que soa a maníaca obsessiva. A vida é feita de soluções de compromisso.

Brandos costumes

Lembro-me de cortar relações com uma menina na escola primária. Não me lembro da ofensa, mas sei que tinha qualquer coisa a ver com um estojo de canetas de feltro, um diz que disse que ela fez uma coisa que nunca existiu ou que era suposto ser segredo. Inventámos um ritual na hora, eu insistia que era necessário, que era assim que se fazia. Lembro-me como se fosse agora. Ela chamava-se Anita, tinha cabelo curto e escuro e ria muito. Nessa tarde estava séria. Eu fiz uma tesoura com a mão e cortei o cordão invisível que nos unia, anunciei já está, já não somos amigas. Nunca mais soube dela.


Carrego comigo a sensação desagradável daquela tarde no recreio. Por causa da Anita não voltei a cortar relações com ninguém. Quando me desinteresso afasto-me devagarinho, como os cacilheiros ao fim do dia.

sexta-feira, agosto 08, 2008

Ipiranga

Diana Ross, a solo desde 1968