domingo, março 08, 2009

Ser mulher

Nasci mulher numa tarde de inverno, surpresa para todos que nessa altura não havia ecografias para prever géneros in utero. Depois de passado o desconsolo aos meus pais, que tinham esperança de acertar pelo menos à segunda, aproveitaram para capitalizar o que tinham aprendido sobre dobrar fraldas de pano para raparigas e a reciclar o guarda roupa da mais velha.

Enquanto fui crescendo, aprendi que as diferenças entre nós e eles se baseavam nos apêndices entre as pernas e pouco mais. Não havia distinção entre brincadeiras nem autorizações especiais para rapazes, a igualdade morava lá em casa.

Na escola, as coisas eram um bocadinho diferentes. As raparigas juntavam-se em bandos para saltar ao elástico, à corda e outras actividades interessantes, os rapazes gostavam de correr com bolas, fossem de futebol ou berlindes. Havia apenas uma coisa que cativava todos; uns pneus enormes, deviam ser de camião ou tractor (pareciam-me gigantescos, provavelmente não o eram), eu gostava de me encaixar lá dentro e que me fizessem rolar pelo recreio fora até ser parada com o embate numa parede qualquer ou apenas pelo atrito da borracha no cimento. O frissom de não ver, de não controlar, de não saber quando ia parar, era indescritível.

Na sala de aula lembro-me que a professora da 3ª e 4ª classe adoptou uma técnica pedagógica que sempre me escapou ao entendimento. Dividia os alunos em grupos: os elevados, os bons, os médios, os medíocres e os maus. Eu era a única rapariga na mesa dos elevados, e várias vezes os apanhei em conspirações para me expulsarem da sua companhia para conseguirem ser os mestres do universo da sala da Sra. D. Eduarda. Houve uma semana em que desci as notas de propósito e passei para a mesa dos bons, que alívio. Era gente mais interessante e mais acolhedora. Infelizmente a professora percebeu a marosca e lá voltei para os elevados, a ter de levar com aqueles embriões de criaturas intragáveis que achavam giro terem clubes de bolinha e sentirem-se os maiores lá da esquina.

Em casa nunca percebi que havia coisas que mulheres ou homens não pudessem fazer. Tanto a minha mãe como o meu pai trabalhavam e muito, a empregada doméstica era a Manuela e o baby sitter era o Francisco. Já nessa altura a minha mãe não chegava a casa às 5h, os empregos eram até ao fim do dia, e havia quem tivesse de ficar connosco. Às vezes eram os avós, mas mesmo aí tanto eles como elas se empenhavam em estar com as miúdas.

Comecei a entender que as mulheres tinham mais deveres que direitos quando a minha mãe achou que já tínhamos idade para ouvir as suas queixas. Que tinha de trabalhar o dobro deles para provar o seu valor para além dos saltos altos, que os lugares de topo estavam cheios de gravatas, que votar era um direito recentemente adquirido, que tantas das coisas que eu dava como normais existiam graças a tantas pessoas antes de mim terem lutado por elas e tantas vezes terem pago preços demasiado altos. Percebi então que a mesa dos elevados era uma estranha representação do que era o mundo e que noutros tempos eu nunca poderia estar ali sentada. Nem poderia ir à escola, na verdade.

Eu tenho muita sorte. Pude estudar o que quis, escolher os trabalhos que mais me interessavam nos sítios que queria, nunca senti qualquer diferença ou condicionamento nem tratamento especial por ser mulher. Estou muito grata a todas os homens e mulheres que fizeram com que isto fosse possível.

No dia em que fiz 18 anos fui-me recensear à Junta de Freguesia com muito orgulho, vim de lá a contemplar o meu cartão de eleitor como um crente para uma pagela. Anos mais tarde vi um documentário sobre as primeiras eleições livres na África do Sul, depois da queda do apartheid. As filas para votar eram quilométricas, as pessoas vinham de todas as aldeias e dançavam e cantavam nas horas, dias, em que esperavam para poder finalmente serem pessoas e cidadãos por inteiro. E mulheres, muitas. Percebes, perguntou-me a minha mãe entre kleenexes. Claro que sim, respondi depois de me assoar.

6 comentários:

sete e pico disse...

ó pá, passa-me um klenex, sff, que este texto está muito bonito....

Anónimo disse...

muito bom post Dester! Diferente dos namorados, da mama e do papa, este e um dia de facto importante. Infelizmente ainda necessario de ser *bem* lembrado. Parabens.

D. Ester disse...

Precisa ser lembrado sim, como tantos outros previlégios que damos por garantidos. É bom ser mulher agora, nem sempre assim foi.

Anónimo disse...

gostei ainda mais deste teu reply! Aplicavel a muitos outros tipos de garantias... :-)

dizia ela baixinho disse...

muito lindo, d. ester.

este coração de pedra feito amaciou-se com tão bela prosa.

:)

JPN disse...

muito bom texto , sim