Desde pequena que o meu pai
- Põe uma camisola
E quando eu reclamava que não tinha frio, respondia sempre
- Tenho eu, por isso pões a camisola.
Normalmente o braço de ferro esticava-se até à altura em que ele tinha de me enfiar a dita pela cabeça abaixo, dizendo qualquer coisa como ser sempre a mesma coisa. Eu estava de acordo, era de facto sempre a mesma coisa. Os meus pais insistiam que eu fizesse o que eu não queria, ou que achava desajustado no tempo ou no espaço. Se a discussão se prolongava, aparecia, mais cedo ou mais tarde, o argumento da hierarquia intrínseca ao ser pai em vez de ser filho.
Quando cheguei à adolescência tornei-me uma especialista no rebolar de olhos e bufar pelo nariz. Depois de tão dura infância, descobri que havia lutas perdidas à partida, mas não me daria por vencida sem demonstrar o meu desagrado. Às vezes o cumprimento das funções era acompanhado de um elegante caminhar a patadas de elefante, que tenho a certeza terem feito vacilar os lustres dos vizinhos de baixo, ou pelo menos deixá-los na dúvida sobre a espécie animal que habitava o andar de cima. Servia esse gentil andar para sublinhar a minha expressão facial, que parecia ser transparente aos idiotas dos meus pais. Só há pouco tempo descobri que fingiam não ver, os espertos.
Algures no tempo o meu pai deixou de me mandar pôr a camisola. Não sei se foi do aquecimento global ou se terei aprendido a enfiá-la na temperatura correcta. De vez em quando ainda lhe rebolo os olhos, para garantir que continuo a ser pequenina, que não estou a crescer, que as covinhas atrás dos dedos das mãos não se estão a infestar com sulcos pequeninos e insistentes, que não começo a ver as veias à transparência com o punho fechado como o meu pai com a idade que tenho agora.