Vivi durante alguns anos numa cidade não portuguesa onde me podia mexer para todo o lado em bicicleta. Desencantei uma pasteleira preta linda, velha a cair de podre que só travava bem na roda da frente (como nunca me espetei de dentes no asfalto é um milagre que atribuo a Santo António), enfiei-lhe um cestinho no guiador e andava feliz e contente. Servia-me para tudo, incluindo as compras do supermercado - com o meu método optimizado levava um saco em cada punho e o terceiro no cestinho, desde que não guinasse demasiado para os lados o plástico não se enfiava pelos raios da roda da frente (de novo, Sto. António sempre atento).
Para além da cidade ser plana, os traseuntes e automobilistas (não consigo dizer esta palavra sem pensar que devia constar uma fotografia do meu avô materno, de boné e luvas de pele sem pontas nos dedos, na respectiva entrada na enciclopédia ilustrada) estavam mais que habituados a partilhar a estrada e os passeios com os apêndices de duas rodas.
Das poucas vezes que tentei a façanha em Lisboa senti-me dentro de um episódio das corridas mais loucas, temendo pela própria vida dada a insensatez dos carros que acham que quem tem bicla que vá para o parque.
Há uns meses li um artigo na new scientist sobre os perigos a que os ciclistas citadinos estão sujeitos - e que nem o capacete os salva. Medindo as distâncias que os carros mantinham da sua bicicleta com e sem protector na cabeça, o investigador chegou à conclusão que lhe davam mais espaço para cair se vissem a sua mona desprotegida. A mais divertida experiência foi quando o mesmo homem na mesma bicicleta pôs uma cabeleira feminina, que fazia com que os condutores se afastassem dele como de criptonite vermelha. Gajas, já se sabe, são desajeitadas, deixa cá ver se não a passo a ferro. (o início do artigo está aqui, para mais informações subscrevam-na).
A questão da inclinação de Lisboa, habilmente explicada aqui, parece-me apenas acessória à do civismo na estrada e condições lojísticas para o uso da bicicleta. Não se pode levá-la nos transportes, no comboio apenas nos urbanos, regionais e interregionais, se e só se, autorizado pelo picas de serviço - o que não é de todo um estímulo para quem precise de usar os transportes públicos em conjunto com a bicla. Convenhamos que pedalar de Mem Martins até ao centro de Lisboa é façanha apenas ao alcance de Venceslaus que têm mais que fazer que ir trabalhar para o escritório a suar em bica e a cheirar mal.
Dizer que (ontem aprendi que é bem começar assim as frases, se quiser parecer uma pessoa séria) as pessoas que mais se inflamam com a questão da impossibilidade de usar bicicleta em Lisboa se incluem nos que não a usaria no seu quotidiano é capaz de não ser um tiro ao lado.
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