segunda-feira, outubro 06, 2008

Continuando o purgatório


Perde-se o tino com a doença, a noção de certo e errado, o bem comum, tratar dos mais fracos. O mal está de fora e não se pode fazer nada contra isso. No caminho para a redenção há que aceitar os limites das próprias forças, as fraquezas de espírito e de corpo, aprender a aceitá-las e a lidar com elas. Para que os outros consigam também aceitá-los e integrá-los.

A estrada para a recuperação não é recta para muitos. A crença num Poder Superior transforma-os em novos cristãos, prontos a gritar aleluia nas alturas mais impróprias. Para alguns foi só colado com cuspo, e com as dificuldades decidem fugir pelo portão sempre aberto, não aguentam as regras, as rotinas, as limitações e as proibições da comunidade, tubo de ensaio da realidade.

Nesta semana houve muitas baixas. Muitas pessoas que desistiram e muitos novos ainda sem visitas, alinhados como num reconhecimento policial - só que ali ao sol, em cadeiras de plástico brancas, com um maços de cigarros em vez do número identificador.

A rapariga muito nova desapareceu, não sabem dela. É bonita, têm medo do que ela andará a fazer ao corpo para ganhar dinheiro para a dose do dia. O rapaz dos ombros largos não veio esta semana para visitar os companheiros. O homem da família numerosa tem os filhos de férias. Apenas o rapaz dos olhos bonitos com faísca recebe de novo o pai, conversam a tarde inteira com sorrisos cúmplices, desta vez sem a mãe e a outra mulher.

Sabes, agora sou guia. Introduzi aquele homem aqui na comunidade. Têm a mesma profissão, tinham ambos tudo para serem homens de sucesso e exemplares. Apenas me resta a esperança que sejam exemplares na recuperação.

Continuo zangada, sinto quanto me custa conversar. Ele pergunta-me pelo namorado, rimo-nos do tempo em que me farejava o telemóvel à procura de rastos da minha vida amorosa. Pergunto-me agora se não seria uma maneira de disfarçar que me tinha ido à carteira tirar as notas que eu pensava ter perdido.

Venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu.

2 comentários:

nove e tal disse...

e Perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos a quem nos tem ofendido.

p.s. importantíssimo. não sei em que passo. algures por aí, à espreita.

D. Ester disse...

eu pu-lo logo no primeiro. http://nobailedadonaester.blogspot.com/2008/09/purgatrio.html